O ano de 1964 foi marcado pela Revolução de 31 de março, que colocou no poder os militares, inicialmente liderados pelo General Castelo Branco. Os revoltosos derrubaram o governo populista João Goulart e precisavam do apoio das massas que lhe davam sustentação. Até então não havia no Brasil qualquer política habitacional. Percebendo a lacuna, o novo governo decidiu criar o SFH – Sistema Financeiro da Habitação. Para isso, tratou de editar a Lei nº 4.380, de 21 de agosto de 1964. O objetivo da lei era facilitar a aquisição da casa própria.
As regras, porém, eram rigorosas. Os imóveis financiados não podiam ser usados por pessoas diferentes da do mutuário e sua família. Não podiam ser revendidos, alugados, nem usados para fins comerciais. O aluguel ou o não pagamento das prestações implicavam rescisão do contrato. Para gerir o novo sistema, o governo criou o BNH – Banco Nacional da Habitação, cuja missão seria estimular a construção de casas de interesse social. Os financiamentos concedidos eram garantidos, por sua própria concepção, pelo regime hipotecário.
O BNH foi extinto em1986, mas o instituto da hipoteca remanesceu, embora todos soubéssemos de sua ineficácia. Recuperar os imóveis inadimplidos demorava até cinco ou seis anos. Era preciso reagir, sob pena de inviabilidade do SFH. A solução foi substituir o sistema hipotecário pelo de alienação fiduciária. Nesta modalidade, a propriedade do bem financiado permanece com o agente financiador, o que facilita a sua retomada em caso de inadimplemento. Para isso foi editada e sancionada a Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997.
A Lei acima vem sendo aperfeiçoada, desde sua sanção, pelas seguintes e sucessivas Leis: nº 11.076, de 2004, nº 10.931, de 2004, nº 11.481, de 2007, nº 12.810, de 2013, nº 13.097, de 2015, nº 13.465, de 2017; nº 14.430, de 2022, nº 14.620, de 2023 e nº 14.711, de 2023. Não há por que alegar desatualização ou omissão legislativa. Mesmo assim, o Conselho Nacional de Justiça, por meio do Provimento 172, de 05 de junho de 2024, deu nova exegese ao art. 38 da Lei nº 9.514/97, eliminando a alienação fiduciária por instrumento particular.
Ora, o atual art. 38 da Lei 9514/97 estabelece: “Os atos e contratos referidos nesta Lei ou resultantes de sua aplicação, mesmo aqueles que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis, poderão ser celebrados por escritura pública ou por instrumento particular com efeitos de escritura pública”. O § 2º (art. 5º) diz: “As operações de comercialização de imóveis, com pagamento parcelado, de arrendamento mercantil de imóveis e de financiamento imobiliário em geral poderão ser pactuadas nas mesmas condições permitidas para as entidades autorizadas a operar no SFI“.
Não há como tergiversar. Ambos dispositivos acima foram aperfeiçoados pelas Leis 11.076/04 e 10.931/04, respectivamente. A Lei 9.514, quando permitiu, por instrumento particular, a alienação fiduciária, visava desburocratizar e facilitar acesso ao crédito. A norma vige há 27 anos. Mas só agora, sem apresentar qualquer contrariedade à sua efetividade, sob o argumento de “mais segurança jurídica e padronização de entendimento”, o CNJ decide reinterpretá-la, não se sabe a que pedido, em total descaso ao permanente esforço legislativo.