O estado do Rio Grande do Sul sofreu recentemente a maior enchente de sua história. Cidades inteiras ficaram submersas, resultando em uma tragédia sem precedentes. Além da destruição visível, a enchente trouxe à tona inúmeras questões legais e práticas, inclusive quanto à situação dos contratos de locação em relação a imóveis atingidos parcial ou totalmente pelos eventos climáticos. Se você está preocupado com os efeitos jurídicos dessa calamidade nos contratos locativos em curso, saiba que não está sozinho. Vamos explorar juntos, em algumas perguntas e respostas rápidas e sem esgotar, logicamente o tema, as possíveis soluções e caminhos a seguir.
Quem fica responsável por reparar os danos causados pela enchente?
Segundo o artigo 22 da Lei do Inquilinato, cabe ao proprietário manter, durante a locação, a destinação contratada e o regular estado de conservação do imóvel locado. Isso significa dizer que é responsabilidade dele suportar os danos decorrentes de caso fortuito ou força maior, como no caso de tornados e enchentes, por exemplo. Caso fortuito pode ser qualificado como aqueles eventos naturais inevitáveis e geradores de danos, como vendavais, inundações e eventos climáticos em geral.
No entanto, isso não significa dizer que qualquer outra negociação não se faça possível, bem pelo contrário. Por questão de conveniência, não raras vezes o locatário assume o ônus do conserto de modo a permanecer no imóvel, solicitando, mediante acordo, alguma vantagem patrimonial, como isenção ou abatimentos no valor do aluguel.
O locatário pode rescindir o contrato de locação?
A Lei de Locações não prevê todas as situações que podem ocorrer no dia a dia, mas o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já se manifestou no sentido de que a destruição do imóvel locado implica automática extinção do contrato de locação (REsp 1707405 – STJ).
Importante salientar que no REsp 1707405, discutia-se a exigibilidade dos aluguéis no período compreendido entre um incêndio que destruiu o imóvel locado e a efetiva entrega das chaves pelo locatário.
Ainda que o julgado não esteja tratando de inundação, está a cuidar de situação similar envolvendo a perda total de um bem por conta de um evento inesperado. Logo, sob a ótica do STJ, no caso de perda total do imóvel que o torne imprestável para o fim a que se destina (locação), a rescisão será automática e ocorrerá a partir do perecimento da própria coisa, independentemente de notificação prévia do locador, desde que o infortúnio, logicamente, tenha ocorrido por causas naturais e sem a contribuição do locatário.
O fato é que a locação consiste na cessão do uso e gozo da coisa em troca de uma retribuição pecuniária, contrato que deixa de gerar efeitos (por conta de rescisão automática) em eventos naturais sérios que impliquem destruição da própria propriedade que dava suporte ao contrato de locação.
Assim, extinta a propriedade pelo perecimento do bem, também se extingue, a partir desse momento, a possibilidade de usá-lo, fruí-lo e gozá-lo, o que inviabiliza, naturalmente, a manutenção da relação locatícia e do próprio contrato celebrado entre as partes.
Segundo o Ministro Moura Ribeiro (REsp 1707405): “O mutualismo que está na base dessa relação jurídica pressupõe, necessariamente, a existência de prestações e contraprestações recíprocas, sendo certo que a quebra desse sinalagma pode configurar enriquecimento sem causa vedado pelo ordenamento pátrio”.
Ok, mas será que daria para traduzir esse “juridiquês”?
Amanda pretende usar imóvel de Betânia.
Para que Amanda possa usá-lo, deve pagar a Betânia o valor de R$ 2 mil reais por mês, a título de aluguel.
Aqui nós temos prestações e contraprestações recíprocas: Betânia cede o imóvel e Amanda paga pelo empréstimo dele.
Ocorreu uma enchente e Amanda não pode mais usar o imóvel em razão da destruição do bem. Nesse caso, Betânia não tem mais como ceder o imóvel para Amanda usar.
Por lógico, não deve Amanda seguir pagando pela locação, pois não há mais qualquer contraprestação de Betânia, que não mais disponibilizará o imóvel para uso da locatária.
Se Betânia seguisse recebendo o valor da locação sem que Amanda pudesse utilizar o bem, estaria enriquecendo às custas dela, enriquecimento que é tido por ilícito (quando alguém recebe algo, sem ter direito àquele valor).
Em razão disso, há entendimento do STJ no sentido de que o contrato, no caso de perecimento (leia-se: destruição) do bem, estaria automaticamente rescindido, sem necessidade de prévia declaração judicial. Ou seja, não precisaria Amanda ingressar com uma ação para pedir que um Juiz reconhecesse esse direito e depois declarasse extinto o contrato, pois extinto já estaria desde o evento danoso.
Mas se não houver perda total do bem, mas apenas deterioração parcial do imóvel?
Nesse caso, o locatário poderá solicitar a rescisão do contrato ou o abatimento do valor do aluguel de modo a fazer frente às despesas com os reparos necessários, inclusive com eventual reposição de mobília, geralmente comprometida, em maior ou menor grau, conforme o tempo de contato e nível da enchente. Nesse caso, por não se tratar de perecimento da coisa (perda do imóvel), o julgado do STJ acima não se amoldaria à hipótese aqui tratada, o que nos leva a crer que a notificação prévia do locatário se fará necessária para informá-lo do interesse na rescisão contratual ou no abatimento do valor do aluguel, situações essas que, lamentavelmente, acabarão desaguando aos montes no Judiciário, se não houver boa vontade e bom-senso entre os envolvidos. Os reparos necessários para que o imóvel volte a alcançar a sua finalidade, deverão ser suportados pelo proprietário do imóvel, mas, novamente, eventual composição amigável sempre é bem-vinda.
Estratégias de Negociação:
Existem diversas estratégias que podem ser adotadas para ajustar contratos de locação em situações de desastre:
Para garantir que qualquer renegociação seja eficaz e juridicamente válida, é crucial manter uma comunicação transparente e documentar todas as condições acordadas. Registre por escrito todas as alterações contratuais havidas (guarde e-mails, Whatsapps e mensagens trocadas) e, dentro do possível, recolha assinaturas dos envolvidos. Isso previnirá mal-entendidos e garantirá maior segurança à relação.
Já há posicionamento no sentido de que a falta de fornecimento de água e luz, nesses casos de desastres naturais, não são de responsabilidade do proprietário. Sendo assim, não deveriam ense- jar descontos no valor mensal do aluguel.
E os imóveis que não foram atingidos?
As proposições acima aplicam-se aos imóveis efetivamente afetados pelas enchentes. E se o locatário de um imóvel próximo, mas que não foi afetado, quiser rescindir o contrato de locação? É compreensível que essa situação tenha sido traumatizante, mas se o imóvel se mantém em condições regulares de habitação, o locatário não teria justo motivo para rescindir unilateralmente a locação sem pagar as multas contratuais pela quebra do contrato.
Imóveis Comerciais:
Para imóveis comerciais alugados, a orientação é semelhante: é importante negociar de modo a encontrar a melhor solução para ambas as partes. Muitos contratos comerciais exigem um seguro. Esse seguro poderia vir a cobrir danos causados por inundações, desde que presente cobertura, específica, para esse tipo de evento, o que pode ser facilmente verificado na própria apólice de seguro, acionando-se a seguradora, se for o caso.
Conclusão:
Lembre-se: é dever do locatário noticiar à imobiliária ou ao proprietário, as condições reais do bem. Enfrentar as consequências de uma enchente é um desafio significativo. No entanto, com empatia, negociação, boa-fé, razoabilidade e uma compreensão clara de seus direitos e deveres, é possível encontrar soluções que minimizem os impactos negativos e promovam a recuperação. Mantenha- se informado, busque orientação jurídica quando necessário, e lembre-se: juntos, podemos superar esses desafios e construir um futuro mias estável para todos.
Advogada e Palestrante Especializada em Direito Imobiliário.
Pós-graduanda em Direito Imobiliário Extrajudicial e pós-graduada em Direito Registral e Sucessório.
Com ampla experiência em leilões de imóveis, percebi a necessidade de qualificação dos corretores de imóveis. Hoje, dedico-me a mentorar corretores, oferecendo orientação jurídica e prática para garantir transações imobiliárias seguras e bem-sucedidas.