Imagine a cena: o martelo bate, o lance é seu! A euforia da conquista é imensa, o auto de arrematação está assinado, e você já se vê como o novo proprietário. Mas, e se a alegria inicial der lugar a uma dor de cabeça inesperada? O que acontece com o IPTU e as taxas de condomínio acumulados no período entre a vitória no leilão e a posse efetiva do imóvel?
Em nosso sistema jurídico, essa transição nem sempre é imediata. A burocracia pode atrasar a emissão da carta de arrematação e a efetiva transferência da posse, criando um verdadeiro “limbo” jurídico e financeiro.
E é nesse “limbo” que nasce um dos debates mais acalorados nos tribunais, especialmente no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), onde a questão é pauta diária de discussões. A disputa vai além dos valores; ela mergulha em conceitos cruciais como a sub-rogação, o fato gerador e o momento preciso da aquisição da propriedade.
Para os tributos anteriores ao leilão, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já deu um norte claro: a Tese 1.134 isenta o arrematante de responsabilidade, sub-rogando esses débitos no preço da arrematação. A ideia é simples e justa: quem compra em leilão não “herda” dívidas passadas. Isso é reforçado pelo Código de Processo Civil (Art. 908, § 1º) e pelo Código Tributário Nacional (Art. 130, parágrafo único), que buscam viabilizar a hasta pública, garantindo que o comprador não herde dívidas antigas.
Nesse cenário, o “divisor de águas” é, em tese, o auto de arrematação, uma vez assinado pelo juiz, arrematante e leiloeiro, a arrematação é considerada “perfeita, acabada e irretratável” (Art. 903 do CPC). A carta de arrematação, nesse cenário, seria apenas um formalismo para o registro da propriedade e sua transferência formal, mas o ato de aquisição já se deu na assinatura do auto.
Portanto, a finalidade de “limpar” o imóvel das dívidas anteriores se esgotaria ali, os débitos posteriores, por lógica, passariam a ser responsabilidade do arrematante.
Mas, se a situação dos débitos anteriores é relativamente clara (constante nos editais), o que dizer das dívidas posteriores, que surgem entre o auto de arrematação e a efetiva posse do imóvel? É aqui que o debate se acirra.
Embora a jurisprudência tenha avançado no reconhecimento da natureza propter rem de tais obrigações (aquelas que acompanham o bem, independentemente de quem seja o proprietário), a questão da sua aplicação aos débitos condominiais pós-arrematação carece de uma definição unificada na jurisprudência.
Atualmente, o entendimento que vem ganhando força no STJ é que a responsabilidade do arrematante pelas despesas (incluindo as condominiais) começa a partir da data da arrematação, ainda que ele não tenha tomado a posse física do bem. No entanto, por não haver uma tese consolidada específica para débitos condominiais futuros, ao contrário da Tese 1.134 para tributos anteriores, o judiciário ainda é palco para intensas discussões.
Entretanto, não menos importante muitos juízes fazem a analogia do leilão com o tema repetitivo 886, entretanto, há certas divergências entre as turma do STJ, que entende que o proprietário deve garantir o pagamento em razão de ser um titular do direito real
Diversos fatores contribuem para a complexidade desse cenário:
1) A Burocracia Pós-Leilão: A demora entre a arrematação e a expedição da carta e a posse efetiva não é incomum, criando um limbo jurídico e financeiro para o arrematante. Durante esse período, o imóvel continua gerando despesas que ninguém quer assumir.
2) Diferentes Interpretações Legais: Mesmo dispositivos legais aparentemente claros, como o Art. 130 do CTN, Art. 908, § 1º do CPC, e o Art. 1.245 do Código Civil (sobre a transferência da propriedade), podem gerar interpretações conflitantes. A disputa sobre se o “divisor de águas” é o auto de arrematação ou o registro da carta é um exemplo clássico dessa ambiguidade.
3) O Papel do Edital de Leilão: A “lei” da hasta pública. A importância de analisar todos os documentos relacionados ao leilão é vital, pois eles podem conter cláusulas específicas sobre a responsabilidade por impostos e taxas que, se aceitas no momento do lance, vinculam o arrematante.
O que tudo isso nos ensina? Que a aquisição de imóveis em leilão, embora possa ser uma excelente oportunidade para bons negócios, exige muito mais do que apenas um bom lance. É um lembrete vívido da complexidade do nosso sistema jurídico e da necessidade de cautela.
Para o futuro arrematante, a lição é clara: não se preocupe apenas com o valor do imóvel, mas dedique-se a compreender as nuances de sua efetiva titularidade e as responsabilidades tributárias e condominiais que podem surgir no caminho, mesmo antes da posse física. E, acima de tudo, tenha sempre ao seu lado uma assessoria jurídica competente para guiar cada etapa dessa jornada, minimizando riscos e transformando a euforia da arrematação em uma conquista sem dores de cabeça inesperadas.
Advogada especialista em aquisições de bens em Leilão Judicial e Extrajudicial, além de estruturação de negócios no segmento de distressed assets – Formada Pela UniFmu, Pós-graduada em Direito Empresarial, Notarial e Registral e MBA em Direito Imobiliário pelo Legale. Mestranda em Resolução de Conflitos e Mediação pela Universidade Europeia do Atlântico. Coordenadora dos núcleos de leilão e protesto e notas da Adnotare e Núcleo de Educação da Abraim, Vice-presidente da Comissão de Leilão Judicial e Extrajudicial da OAB/Jabaquara, Membro da Comissão Especial de Direito Bancário da OAB/SP, Comissão de Estudo em Falência e Recuperação Judicial da OAB /Campinas, ABA – Comissão de Leilões Regional Sudeste e integrante do ImobPorElas. Professora e autora de diversos artigos jurídicos. Atua na assessoria especializada para investidores, leiloeiros, advogados e administradores judiciais.