No cenário jurídico imobiliário, contratos particulares de compra e venda firmados há décadas ainda suscitam dúvidas quanto à sua força obrigacional, em especial quando contêm cláusula de arrependimento. No entanto, o avanço da jurisprudência e da doutrina tem estabelecido parâmetros claros para a admissibilidade da adjudicação compulsória nesses casos, conferindo maior segurança jurídica às relações negociais consolidadas ao longo do tempo.
É preciso compreender que, embora a cláusula de arrependimento preveja, em tese, a possibilidade de desistência por uma das partes, esse direito não pode ser exercido a qualquer tempo, indefinidamente. A ausência de manifestação do vendedor por tempo prolongado, somada à posse contínua, mansa e pacífica do comprador, ao pagamento integral do preço e à assunção das obrigações inerentes à titularidade do imóvel (como tributos e encargos condominiais), é suficiente para caracterizar o cumprimento substancial do contrato e a consolidação da propriedade de fato.
A jurisprudência pátria tem reconhecido que, em contratos firmados há muito tempo, como os celebrados nos anos 80 ou 90, a cláusula de arrependimento perde eficácia diante da inércia da parte que a ela pretende se apegar. O Judiciário, sensível à função social do contrato e à proteção da confiança legítima, tem admitido a adjudicação compulsória nesses contextos, sobretudo quando demonstrada a boa-fé do comprador e o cumprimento das obrigações contratuais.
Além disso, o atual Código de Processo Civil confere ao juiz poderes para suprir eventual ausência de formalidade no instrumento contratual, desde que preenchidos os requisitos essenciais: individualização do imóvel, comprovação da titularidade do promitente vendedor, existência do contrato escrito (ainda que particular) e comprovação da quitação. A adjudicação compulsória, assim, não está condicionada à perfeição formal do título, mas sim à realidade jurídica e material do negócio.
Importa destacar que o instituto da adjudicação compulsória não visa proteger meramente a forma, mas assegurar a concretização de um direito já materializado, em respeito ao princípio da boa-fé objetiva, à função social do contrato e à estabilidade das relações jurídicas. Trata-se de uma medida judicial que confere ao comprador, impossibilitado de obter a escritura por ato voluntário do vendedor, a regularização registral do imóvel que, de fato, já integra seu patrimônio.
Portanto, ainda que o contrato contenha cláusula de arrependimento, sua não utilização ao longo dos anos, aliada à consolidação da posse e ao adimplemento contratual, torna plenamente viável o pedido de adjudicação compulsória. Cabe ao corretor de imóveis, profissional essencial à intermediação segura de negócios imobiliários, compreender essas nuances jurídicas para orientar seus clientes com precisão, responsabilidade e respaldo técnico.
Segurança jurídica, estabilidade nas relações contratuais e respeito à boa-fé devem prevalecer sobre formalismos. A adjudicação compulsória, nesses casos, não é apenas possível, é medida que concretiza o direito e assegura a eficácia prática do negócio firmado.
Advogada especializada em Direito Imobiliário, é sócia fundadora de um escritório de advocacia com atuação voltada à assessoria jurídica no mercado imobiliário. Com sólida experiência na área, também atua como Membro Relatora da Comissão de Direito à Cidade e da Comissão de Compliance e Governança Jurídica da OAB/PR.
Teve passagem pela CEFISP – Comissão de Ética e Fiscalização do Exercício Profissional do CRECI-PR, contribuindo ativamente para a regulação e boas práticas do setor. Reconhecida por sua atuação técnica e ética, é referência em consultoria jurídica para incorporadoras, construtoras, imobiliárias e investidores do setor.