Pandemia, direito imobiliário e sustentabilidade

Imagine a seguinte situação hipotética: uma loteadora lança um empreendimento na região da Grande São Paulo com 1,2 mil unidades. Os interessados devem assinar uma proposta no estande de vendas que servirá de base para a confecção do contrato. Após alguns dias, o comprador retorna ao estande de vendas para assinar o contrato, levá-lo ao cartório dc notas mais próximo para o reconhecimento de firmas e devolvê-lo assinado, percorrendo uma clistáncia de 16,5 km entre o estande e o cartório.

Vão-se alguns meses até que o comprador deve novamente comparecer ao cartório de notas para assinar e a escritura e levá-la no cartório de registro de imóveis, que em nosso exemplo, está localizado a 10,5 km de distância do cartório de notas.

Ao fim do processo, cada comprador terá percorrido 27 km apenas para realizar o traslado de documentos para os trâmites burocráticos da compra do imóvel.

Multiplicando pelo número total de 1,2 mil lotes, nesse empreendimento fictício são percorridos 32,4 mil km pelos compradores nesse processo.

Veja que são números bem conservadores, uma vez que não foram considerados os trajetos realizados pelos compradores entre suas residencias e os cartórios ou estande de vendas. Bem como foi desconsiderado o comparecimento de mais de uma vez ao cartório, seja para verificar o andamento do processo ou complementar informações, o que é muito comum. Também não estão na conta os translados realizados pela loteadora, que é obrigada a reconhecer firma dos proprietários dos lotes à venda.

Esse empreendimento só é fictício porque a pandemia do covid-19 obrigou o direito imobiliário a se modernizar e todo esse procedimento burocrático com a adoção de uma solução simples. Para o loteamento em questão, a empresa cadastrou os clientes no estande de vendas e distribuiu tokens paraque os mesmos pudessem assinar digitalemnte a documentação, sem necessidade de ir ao cartório.

Desde 2009, com a edição da lei 11.977/09, a Lei de Registro Público passou a prever a recepção de documento eletrônico assinado com o certificado1CP Brasil bem como a transferência de imóveis por meio de assinatura digital certificada.

A lei previu ainda a obrigatoriedade dos serviços de registros públicos disponibilizarem a recepção de títulos e o fornecimento de informações e certidões em meio eletrônico. Mas, na prática, pouca coisa tinha sido implementada até 2020 e muitos registros de imóvei criavam resistência para recepção de tais títulos, pois o custo de implementar a nova operação eletrônica era alto.

O cenário mudou com a crise sanitária da covid-19, que gerou a edição do provimento nº 94/2020, do Conselho Naciona de Justiça (CNJ). prorrogado pelos Provimentos 110 e 114 (vigente até junho de 2021), que obrigou os cartórios de imóveis recepcionarem os títulos eletrônicos.

É possível ver os resultados dessa mudança na prática.

Segundo o Serviço de Registro Eletrônico de Imóveis (SRE1), no ano passado cerca de 216,2 mil irisáveis foram registrados eletrônicamente, a maioria por pessoas físicas.

Empreendimentos que digitalizaram totalmente suas burocracias cartorárias já são uma realidade. O número ainda é baixo, mas três vezes superior aos dados de 2019, quando praticamente apenas tabeliães utilizavam a plataforma. Também é possível verificar o crescimento em virtude da pandemia, uma vez que em janeiro de 2020 houve menos de 7 mil registros eletrônicos, em dezembro esse número já ultrapassava a marca de 28 mil. Crescimento que tem se mantido em 2021.

Agora imagine os números do exemplo inicial desse texto expandido para todos esses registros eletrônicos. Apenas no loteamento citado deixaram de ser emitido entre 10,8 mil kg e 15,8 mil kg de CO2. a depender do tamanho dos veículos dos compradores e do combustível utilizado, segundo a calculadora da consultoria em sustentabilidade Eccaplan.

Ressalta-se mais uma vez, que não foram considerados nessa conta os deslocamentos que os vendedores teriam que realizar, o que certamente aumentaria muito esse valor.

Além disso a eliminação da necessidade de impressão de propostas, contratos e escrituras em várias vias significou uma economia em torno de 200 mil folhas de sulfite, °equivalente a 20 árvores que deixaram de ser derrubadas. Transponha esses números não para 1,2 mil lotes, mas para 216,2 mil imóveis registados eletronicamente em um ano e veja como a sustentabilidade foi trazida para o cerne do direito imobiliário.

Ainda há muito que pode ser feito. Hoje a assinatura digital a única forma de reconhecimento aceita pela Lei de Registro Público. Outras tecnologias poderiam ser adicionadas a esse rol trazendo o mesmo nível de segurança, mas a um custo muito menor e muito mais acessível a maior parte da população, como por exemplo, o reconhecimento facial ou da íris.

Empreendimentos que digitalizaram totalmente suas burocracias cartorárias já são uma realidade e estão se espalhando rapidamente por várias cidades este ano. Forçado à mudança pela terrível pandemia que se abateu sobre todo o mundo, o direito imobiliário foi obrigado a evoluir em poucos meses o que certamente levaria longos anos para caminhar. Mas precisa mos acelerar mais e levar essas mudanças para toda a população, tornando a sustentabilidade uma parceira indissociável da área imobiliária.

 

CONHEÇA MAIS SOBRE A AUTORA DESTE POST:

Kelly Durazzo

Sócia do Durazzo & Medeiros Advogados, diretora da Regularização Fiduciária Urbana (REURB) e docente da Universidade Secovi.

Presidente da Comissão de Loteamento da OAB/SP;

Presidente da Comissão de Loteamentos do IBRADIM;

Conselheira Jurídica da AELO (Associação das Empresas de Loteamento e Desenvolvimento Urbano);

kelly@durazzomedeiros.adv.br

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