Inovações legais ao longo do tempo: breves explicações sobre a Lei 4.728/65 a 14.711/2023.
A introdução da alienação fiduciária no ordenamento jurídico brasileiro ocorreu em 1965, por meio da Lei 4.728. Inicialmente, essa legislação restringia-se aos financiamentos de compra e venda de bens móveis duráveis, aplicando-se a negócios no âmbito do mercado financeiro e de capitais.
A verdadeira expansão da alienação fiduciária, conforme conhecemos hoje, aconteceu com a promulgação da Lei 9.514/97, ainda em vigor. A partir desse marco, a alienação fiduciária passou a ser uma modalidade contratual que permitia a constituição de propriedade de bens imóveis como garantia, inclusive por instituições financeiras.
No contexto da alienação fiduciária em garantia, o devedor (fiduciante) transmite a propriedade do bem ao credor (fiduciário) como garantia do pagamento da dívida. O devedor (quem tomou o crédito) mantém a posse e o uso do bem, porém, a propriedade efetiva permanece com o credor até a quitação integral da dívida.
Trata-se de um direito real de garantia amplamente utilizado em transações imobiliárias, tanto por instituições financeiras quanto por particulares. A consolidação extrajudicial da propriedade, uma forma desburocratizada e extrajudicial de tomar o bem em garantia, é uma vantagem significativa que atrai frequentemente os mais diversos credores.
Vale ressaltar que recentemente a (im)possibilidade de consolidação da propriedade pelo credor fiduciário foi objeto de debate no Supremo Tribunal de Justiça. Segundo os termos proferidos no julgamento de novembro deste ano, o procedimento não dependeria de intervenção judicial, confirmando assim o texto legal.
Até a sanção do Marco Legal das Garantias, não era permitida a constituição simultânea de propriedades fiduciárias em diferentes graus, ao contrário do que ocorre na hipoteca. Com a concretização da garantia, a propriedade do bem passava integralmente para o credor, e enquanto a dívida estivesse pendente, o devedor não tinha mais o poder de dispor sobre o bem e assim era impossibilitado de ofertá-lo em garantia para negócios futuros.
No entanto, a Lei 14.711/2023 trouxe inovações, permitindo a alienação fiduciária de propriedade superveniente em garantia. Essa modalidade, também conhecida como alienação fiduciária “de segundo grau” ou sucessiva, possibilita o uso do mesmo imóvel como garantia em mais de uma transação. Isso inclui o recarregamento da dívida, proporcionando, em tese, acesso ao devedor a mais recursos.
Legalidade e estratégias: os pré-requisitos cruciais para vendas com financiamento
A comercialização de imóveis financiados é uma forma de alienação comum no cotidiano do corretor de imóveis, dada a abundância de propriedades ainda não quitadas no mercado. No entanto, para que essa operação seja lícita e, portanto, válida é crucial observar determinados requisitos.
O ponto central para avaliar a viabilidade do negócio envolve (i) a quitação antecipada do saldo devedor ou (ii) o consentimento do credor fiduciário. Sem a observância de um desses requisitos, o negócio pode ser considerado ineficaz perante terceiros ou até mesmo nulo, conforme o que indicam as decisões judiciais em todo.
Quando uma dívida é estabelecida com um bem imóvel como garantia fiduciária, a propriedade do bem passa para o credor, o qual permite que o devedor mantenha a posse até a quitação integral do débito. Surge, assim, uma bipartição dos direitos oriundos sobre o mesmo bem.
Nesse contexto, é aconselhável que vendedor e comprador acordem no contrato, a quitação prévia à a assinatura de qualquer instrumento particular, seja por meio dos recursos próprios do vendedor ou imediatamente ao negócio firmado, por meio da utilização dos recursos do primeiro pagamento. Após o pagamento da dívida garantida, o credor deverá emitir um termo de quitação.
A partir desse registro, torna-se possível efetuar novos registros na matrícula imobiliária e dispensada a anuência do então credor em novos negócios, haja vista a extinção da dívida. Quanto a inviabilidade de novos registros, isso se dá considerando que a maioria dos registradores entende ser inviável o registro de compromisso de compra e venda de um imóvel alienado fiduciariamente sem a anuência da credora fiduciária, conforme estipula o art. 29 da Lei nº 9.514/97, respaldado no Princípio da Legalidade.
Esse entendimento é corroborado pelo Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, conforme evidenciado no julgamento da Apelação Cível nº 1103676- 50.2014.8.26.0100. O Relator, ao analisar o recurso, concluiu que os “compromissários vendedores” são, na realidade, detentores de direitos reais de fiduciante, não sendo proprietários do imóvel, e que a operação em questão depende da expressa anuência do credor.
Além das duas hipóteses mencionadas, é possível também a venda de imóvel financiado por meio da contratação de um novo financiamento pelo comprador, denominado interveniente quitante. Dessa forma, um novo agente financeiro assume a responsabilidade pela quitação da dívida original, constituindo automaticamente garantia sobre o imóvel transacionado.
Os riscos de negócios ilícitos: quando o pagamento de parcelas em nome de outra pessoa pode se tornar um grande prejuízo para o seu cliente
Apesar da possibilidade de comercializar imóveis oferecidos como garantia fiduciária, deparamo-nos frequentemente com transações ilícitas. Infelizmente, não é incomum que as partes disponham apenas sobre o pagamento das parcelas do financiamento e esse acordo seja alheio ao credor fiduciário.
Os riscos associados a essa prática são numerosos. Se o credor fiduciário não consentiu com o novo acordo, qualquer transação se torna ineficaz perante ele. Isso implica que, em caso de problemas com o financiamento, o “comprador” não terá base legal para tomar medidas judiciais contra o banco, pois o contrato é de titularidade de outra pessoa.
A clandestinidade dessa operação, desprovida de registro públicoou de alterações nos sistemas do agente financeiro, permite que o devedor fiduciário venda seusdireitos mais de uma vez para pessoas distintas. Além disso, há o risco de esses direitos serem penhorados futuramente, mesmo que a dívida que originou a penhora não esteja relacionada ao financiamento em questão.
Além disso, é extremamente comum quando um imóvel financiado é adquirido por meiode um simples contrato por meio do qual o interessado passa a ser responsável pelo pagamento das parcelas, muitas pessoas deixam de elaborar um instrumento de procuração em causa própria.
Na procuração, o vendedor, como titular do financiamento, concede poderes ao comprador para solicitar o termo de quitação e a liberação da alienação fiduciária junto ao banco, permitindo que o negócio ocorra após a morte do vendedor.
A ausência desse documento pode resultar em complicações afinal de contas se o vendedor falecer, o imóvel, por não ser possível de registro a nova operação, integrará a herança. Os herdeiros poderão ignorar a venda do imóvel e solicitar a partilha do bem no procedimento de inventário.
Independentemente da elaboração de documentos adicionais, é importante destacar que diversos Tribunais de Justiça têm inclinado para declarar a nulidade do negócio devido à falta de viabilidade de venda formal, mesmo considerando apenas os direitos e não a propriedade. Em outras palavras, é como se o negócio travado não existisse para além das partes contratantes.
Transparência e legalidade: a responsabilidade do corretor e a necessidade de assessoria jurídica nas transações imobiliárias
No exercício da atividade de corretagem imobiliária, é imperativo que o profissional observe criteriosamente as normas legaisque regemsua atuação, sobretudo aquelas estabelecidaspara salvaguardar os interesses e a segurança das partes envolvidas. O artigo 723 do Código Civil, por exemplo, estabelece obrigações específicas ao corretor de imóveis, destacando a responsabilidade de fornecer informações claras e precisas sobre a segurança e riscos relacionados ao negócio.
Nesse sentido, é incumbência do corretor assegurar que os clientes estejam plenamente cientes de todas as nuances que permeiam a transação imobiliária, permitindo-lhes tomar decisões informadas e conscientes. Ademais, o Código de Ética do Corretor de Imóveis, em seu artigo 4º, complementa essa obrigação, reforçando a importância da transparência e de eventuais circunstâncias que possam comprometer o negócio.
O descumprimento dessas normas não apenascompromete a credibilidade do profissional, mas também pode resultar em consequências legais. A responsabilização civi l do corretor é uma possibilidade concreta quando seu comportamento negligente resulta em danos às partes envolvidas. Dessa forma, a observância rigorosa desses preceitos legais e éticos não apenas protege a reputação do corretor, mas também resguarda os direitos e interesses fundamentais dos clientes, contribuindo para uma prática profissional mais justa e responsável.
Assim, é importante que o profissional da corretagem se acautele tomando as medias cabíveis para demonstrar que cumpriu com seu dever legal ao intermediar negócios envolvendo bens imóveis alienados fiduciariamente, fazendo constar tudo no respectivo instrumento.
Além disso, diante da complexidade intrínseca às nuances legais que envolvem a venda de bens alienados fiduciariamente e as recentes inovações legislativas, torna-se incontestável a imprescindibilidade de uma assessoria jurídica especializada. O cenário jurídico, marcado por mudanças desde a Lei 4.728/65 até a recente Lei 14.711/2023, demanda uma compreensão profunda e atualizada por parte dos envolvidos em transações imobiliárias.
VICTÓRIA DIEZ
Advogada apaixonada pelo mercado imobiliário.
Nascida e criada em Londrina – PR, minha jornada acadêmica foi marcada pela busca constante pela excelência.
Concluí minha pós-graduação em Direito Empresarial na Escola Brasileira de Direito e aprofundei meu conhecimento em direito imobiliário ao obter meu título de especialista em direito e negócios imobiliários através do Master of Laws (LL.M) da Fundação Escola Superior do Ministério Público.
Durante meus cinco anos de atuação no dinâmico mercado imobiliário, dediquei-me intensamente à análise de riscos envolvendo transações e contratos imobiliários diversos. Para mim, a verdadeira maestria vem da combinação harmoniosa de diversas áreas de conhecimento, nos âmbitos prático e teórico.