Em recente decisão proferida por unanimidade pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), em julgamento dos recursos especiais (REsps) 1949182/SP, 1959212/SP e 1982001/SP, sob o rito dos repetitivos (Tema 1.158), a 1ª Seção do STJ reconheceu que, antes da consolidação da propriedade e da posse do imóvel, o credor fiduciário não pode ser considerado sujeito passivo do imposto, conforme o disposto no Código Tributário Nacional (CTN).
Antes de adentrarmos no mérito da decisão, necessário introduzir os conceitos de Alienação, Credor e Devedor Fiduciário.
Alienação fiduciária prevista na Lei 9.514/1997 consiste em instituto jurídico que permite a transferência de uma propriedade a um credor como garantia do pagamento de uma dívida. Isto é, para a aquisição do imóvel, o devedor realiza um financiamento que será garantido pelo próprio imóvel.
A título de exemplo imobiliário: – um comprador almeja um apartamento no valor de 500mil reais, mas dispõe somente de 100mil à vista. Por isso, precisa financiar os 400mil remanescentes diretamente com uma instituição financeira, e para o aceite da liberação dos valores, comprador e banco pactuarão um contrato de alienação fiduciária, com a previsão de a instituição conceder os valores, e em troca, gravar o imóvel como garantia de que o interessado irá de fato pagar as prestações, sob pena de perder o apartamento, como ocorrem os casos dos leilões.
Este cenário também é conhecido em loteamentos, onde a loteadora viabiliza a alienação fiduciária com ela própria para que os clientes consigam adquirir os lotes por meio de financiamento, e, com efeito, gravando os lotes como garantia.
O objetivo é claro, pessoas que não desejam ou não podem arcar com os custos de uma propriedade de forma à vista, recorrem ao financiamento; onde o próprio bem será a segurança de que a instituição financeira receberá o valor, e, em caso negativo terá o imóvel como salvaguarda daquele direito.
Dito isso, vislumbramos o sujeito do credor fiduciário como sendo a pessoa ou instituição financeira que concede o financiamento, e o devedor fiduciário como aquele que contrai a dívida para aquisição do bem.
Os efeitos deste contrato no exemplo imobiliário são: credor detém a posse indireta sobre o imóvel, ou seja, é o proprietário registral, mas não exerce nenhum domínio sobre o bem; o devedor por sua vez, exerce a posse direta com animus domini, porém sem o direito de aliená-lo ou transferi-lo sem anuência do credor.
Superada esta fase do conceito, passemos ao recente entendimento do Superior Tribunal de Justiça, que firmou entendimento de que o Credor Fiduciário não será solidário nas execuções ficais oriundas de cobranças de Imposto Territorial e Predial Urbano (IPTU).
Imaginemos o seguinte cenário: Comprador adquire um apartamento, reside no local há 02 (dois) anos, e paga pontualmente as parcelas à instituição financeira Banco X. Imagine que este banco é surpreendido com protestos e demanda judicial em seu nome, em decorrência de 02(dois) anos de IPTU em atraso, considerando pensar que o devedor fiduciário, ora adquirente da propriedade estivesse adimplindo o Imposto, tal qual o faz com as parcelas.
Nesta ocasião, o STJ pacificou entendimento de que antes da consolidação da propriedade e da imissão na posse no imóvel (após o não pagamento da dívida pelo devedor e leilão do bem) objeto da alienação fiduciária, este “Banco X” mencionado no exemplo acima, não seria legítimo para figurar em eventual demanda passiva de cobrança destes IPTUs, ainda que solidariamente, por não se enquadrar em nenhuma das hipóteses do artigo 34 do Código Tributário Nacional, ademais, a responsabilidade de pagamento do IPTU é claramente prevista no parágrafo 2º, artigo 23 da Lei 9.514/1997.
A controvérsia em questão originou-se no município de São Paulo, que pleiteava a inserção do Banco Itaú no polo passivo de execução fiscal dos débitos municipais, sustentando a alegação de que o credor fiduciário traduz-se como responsável pelos tributos incidentes que recaem sobre o imóvel, resultando assim pela legitimidade de figurar o polo passivo da referida ação.
No entanto, o Tribunal de Justiça de São Paulo, entendeu pela ilegitimidade da instituição financeira. A decisão leva em considerando o fato de que, o credor fiduciário não consiste em dono do imóvel, e não exerce sobre ele animus domini, ou seja, não tem sequer a intenção de ser dono, mas tão somente debruça sobre ele propriedade resolúvel.
A Associação Brasileira de Incorporações Imobiliárias (ABRAINC) ingressou no processo judicial em Outubro de 2023 enquanto Amicus Curiae, ao lado da Febraban e Abecip com o objetivo de manter a segurança jurídica e maior presciência no mercado imobiliário.
Em estudo realizado pela Febraban (Federação Brasileira de Bancos), demonstrou-se que se o IPTU fosse incluído na responsabilidade dos Bancos, as taxas e juros dos financiamentos imobiliários aumentariam de 2 a 2,5 pontos percentuais, impactando diretamente no PIB provocando redução estimada de aproximadamente R$ 235 bilhões em 2025, além da diminuição da arrecadação do imposto, repercutindo nos cofres públicos.
A decisão por sua vez, impacta também loteadoras e incorporadoras que utilizam a alienação fiduciária como mecanismo de financiamento e venda, pois:
Lançar um empreendimento imobiliário requer cautela e muito estudo, muito além das aprovações e fatores burocráticos que envolvem esta negociação, sabido é que, a legislação protege as partes consideradas “vulneráveis” na relação, além de interesses públicos acima dos demais.
Com isso, “a vida” das incorporadoras e loteadoras tende a ser dificultada, seja no momento de realizar uma rescisão contratual, devolução de valores pagos, benfeitorias, cobranças e inadimplência, enfim, após o lançamento do empreendimento, no chamado “pós-venda”, muitas dificuldades podem ocorrer.
Aqueles que trabalham com empreendimentos imobiliários sabem que o IPTU pode ser um destes grandes desafios. E por isso, medidas preventivas e controles completos precisam ser algo planejado e muito bem consolidado. Especialmente nos loteamentos abertos, sem acesso controlado, por isso, listamos também alguns pontos críticos observados ao longo dos anos em relação a esta temática:
A chave para evitar problemas é um bom controle de vendas, comunicação ativa com compradores e prefeituras, e atuação preventiva para evitar execuções fiscais ou cobranças indevidas.
Providências como formalização da transferência de responsabilidade através de um contrato bem redigido, notificações à prefeitura; monitoramento da atualização cadastral por meio de acompanhamento dos cadastros de IPTU e solicitação de transferência de titularidade ao comprador; controle e gestão interna com envio de comunicações frequentes aos compradores; desmembramento da gleba para redução de IPTU antes da venda; sem contar obviamente a contratação de assessoria jurídica especializada a fim de evitar passivos judiciais como execuções fiscais.
Adotando práticas como estas, as empresas conseguem mitigar riscos, evitar cobranças indevidas e manter uma gestão eficiente de IPTU.
A recente decisão do STJ, ao afirmar que o credor fiduciário não pode ser responsabilizado pelo pagamento do IPTU antes da consolidação da propriedade em seu nome, reforça a segurança jurídica nas operações de alienação fiduciária e alinha-se ao que determina o Código Tributário Nacional.
Esse entendimento protege instituições financeiras, incorporadoras e loteadoras de cobranças indevidas, garantindo que a responsabilidade pelo tributo recaia sobre quem efetivamente detém a posse e usufrui do imóvel.
Além de evitar passivos tributários indevidos, a decisão fortalece o mercado de financiamento imobiliário, assegurando que a alienação fiduciária continue sendo um instrumento eficiente para concessão de crédito. A clareza na definição do sujeito passivo do IPTU reduz litígios e aprimora a previsibilidade nas relações entre credores, devedores e municípios. Trata-se, portanto, de um avanço essencial para o setor imobiliário e para a correta aplicação da legislação tributária.
Advogada, sócia fundadora do Escritório Alves Penello Advocacia e Consultoria, especialista em Direito Imobiliário com mais de 10 anos de atuação.
Mestranda em Direito das Relações Econômicas e Sociais pela Instituição Milton Campos, Vice-presidente da Comissão de Direito Imobiliário OAB/MG, subseção do Barro Preto, Co-líder da Regional Minas Gerais do Instituto Mulheres do Imobiliário e Secretária AMADI Mulher.