Há quase três anos da implementação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), muitos corretores ainda lidam com práticas precárias no tratamento de informações de clientes e interessados em imóveis. Apesar das significativas adaptações realizadas por empresas de diversos setores, observamos mudanças paradoxais na abordagem dos corretores em suas atividades profissionais.
No cenário imobiliário, é comum a troca de dados e informações sobre clientes e propriedades, seja por meio de plataformas especializadas ou de maneira informal, como nos aplicativos de mensagens, como o WhatsApp. Embora essa prática tenha como objetivo facilitar parcerias e ampliar oportunidades de negócios, a realidade é que a coleta e compartilhamento descuidado de dados na rotina da corretagem tem implicações sérias.
Quantos leads você recebeu hoje? Quantas autorizações de venda foram enviadas ou quantas pessoas procuraram sua assistência na busca por um imóvel? Este artigo pretende abordar o momento e a maneira ideais de registrar a coleta de dados entre imobiliárias ou corretores parceiros, visando evitar a prática de atos ilícitos no processo.
Dados pessoais no setor imobiliário
A legislação em vigor define dados pessoais como informações relacionadas a pessoas naturais, isto é, indivíduos identificados ou identificáveis. De acordo com a LGPD, tais regulamentos não se aplicam aos dados titularizados por pessoas jurídicas, não considerados dados pessoais nos termos da lei. Exemplos de dados pessoais incluem nome, sobrenome, RG, CPF, além de dados identificáveis, como geolocalização (GPS), endereço IP, identificação de dispositivo de acesso e endereço residencial.
A legislação também reconhece informações sensíveis, como origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato, dados referentes à saúde, vida sexual, dados genéticos ou biométricos. Por outro lado, há dados classificados como anônimos, cujo titular não pode ser identificado.
Os pseudonimizados são submetidos a tratamento, não permitindo a associação direta ou indireta a um indivíduo, a menos que se utilize informação adicional mantida separadamente pelo controlador em ambiente seguro. Os dados pessoais e sensíveis coletados de clientes, parceiros e colaboradores requerem atenção especial.
Além da qualificação do cliente, dados relacionados à localização, como fotos de imóveis residenciais, também são protegidos pela LGPD, exigindo tratamento seguro e conforme os parâmetros estabelecidos pela legislação.
Da assinatura à transparência: uma reflexão sobre as melhores práticas na gestão de dados imobiliários
Ao me deparar com diversos contratos imobiliários, como compra e venda, permuta, e cessão de direitos, percebi que muitos deles incluíam cláusulas de proteção de dados. Contudo, é surpreendente notar que muitos corretores negligenciam um documento crucial em sua rotina profissional: as autorizações de venda ou os contratos de representação do comprador.
Essa fase inicial do processo, frequentemente tratada de maneira simplificada, levanta questões de extrema relevância. Quantas vezes você se preocupou em inserir na autorização ou no contrato de intermediação disposições sobre a realização de parcerias com o comprador?
Em alguns setores ou regiões, é comum que clientes não autorizem a publicidade de seus imóveis, buscando anúncios e vendas mais discretas, fora dos canais convencionais. No entanto, será que esses clientes têm conhecimento claro de como seus dados serão divulgados?
Mesmo após anos de vigência da LGPD, muitos corretores e imobiliárias ainda não revisaram adequadamente seus procedimentos internos para o tratamento de dados pessoais dos clientes. É crucial avaliar se o compartilhamento desses dados é respaldado pelo consentimento do titular ou se é necessário para atender aos interesses legítimos do controlador ou de terceiros. O consentimento, conforme definido pela LGPD, deve ser uma manifestação livre, informada e inequívoca.
Contudo, sua revogação imediata e os cuidados necessários tornam essa base legal menos desejável. Assim, em determinados casos, a base legal do legítimo interesse seria a mais interessante. Essa abordagem, centrada na legítima expectativa do titular, sugere que, ao assinar a opção, o titular razoavelmente espera que seus dados sejam compartilhados em plataformas e sites para ampliar a visibilidade do imóvel e facilitar a venda.
No entanto, a possibilidade de utilizar o legítimo interesse não isenta as imobiliárias de adotarem medidas para garantir a transparência no tratamento de dados. Ao analisar os instrumentos comumente usados na corretagem diária, percebo que as disposições sobre dados coletados em compromissos de venda e compra, permuta ou cessão não atendem plenamente às exigências legais.
Portanto, acredito que o momento ideal para abordar a justificativa da coleta e a base legal para o tratamento é durante a própria coleta, ou seja, no momento da contratação – e, não apenas na concretização do negócio. Isso porque a relação corretor/imobiliária-cliente se inicia muito antes do consenso sobre os elementos essenciais do negócio.
Decisões judiciais sobre o tema
A primeira aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) no Brasil ocorreu em 29/09/2020, envolvendo a empresa Cyrela, uma das principais do setor imobiliário. A sentença, proferida pela juíza Tonia Yuka Koroku, condenou a empresa a pagar uma multa indenizatória de R$ 10 mil por compartilhar indevidamente dados pessoais de clientes, resultando em assédio por parte de empresas parceiras que ofereciam produtos como mobília planejada.
Entretanto, a 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo reformou a sentença. A relatora acolheu as razões de apelação da Cyrela, afastando a condenação.
A decisão do recurso destaca o marco temporal para a aplicação da LGPD, enfatizando que, no caso, a lei não estava em vigor quando o suposto vazamento de dados ocorreu (novembro de 2018). Além disso, ressalta a necessidade de comprovação efetiva do dano para a imposição de indenizações, rejeitando a alegação de violação à privacidade baseada em contatos indesejados, e reforça que mero aborrecimento não constitui dano moral.
Outro aspecto de extrema importância, que servirá como referência para orientar futuras decisões e, inevitavelmente, atuará como um forte desencorajador para a apresentação de ações em busca de indenização por danos morais com base em eventos comuns da vida social, é o fato de o acórdão ter estabelecido como regra fundamental a necessidade imperativa de apresentação no processo judicial de evidências substanciais, indo além de simples alegações e argumentos, para comprovar a existência do dano.
Isso se deve ao fato de que consta no acórdão (decisão do recurso) que não há prova inequívoca de que foi a requerida quem repassou os dados pessoais do requerente aos prestadores de serviços que o contataram por e-mail e mensagens de WhatsApp.
Analisando outros casos, ainda que improcedentes, esses destacam a relevância do entendimento dos tribunais sobre o tratamento ilícito de dados pessoais no setor imobiliário, enfatizando que o compartilhamento sem uma base legal autorizativa pode levar à responsabilização. Do mesmo modo, sendo possível a comprovação de nexo causal, atestando o vazamento, a probabilidade de condenação é extremamente alta.
Certamente que por se tratar de legislação recente se mostra interessante observar a forma de intepretação da lei pelos Tribunais até que seja formado certo consenso sobre o tema.
Desafios e oportunidades na adequação à LGPD
Possível concluir que em um cenário em que a LGPD completa quase três anos de implementação, fica evidente que os corretores de imóveis precisam ajustar suas práticas para garantir a segurança e privacidade dos dados dos clientes. A legislação impõe desafios, mas também abre portas para uma abordagem mais transparente e ética no tratamento das informações no setor imobiliário.
O aprendizado com casos judiciais, mesmo que não resultem em condenações, reforça a relevância do entendimento dos tribunais sobre a necessidade de cuidado e atendimento às regras previstas na legislação em vigor no tratamento de dados pessoais no mercado imobiliário. A atenção à base legal autorizativa e o nexo causal são elementos-chave para evitar responsabilizações, enquanto a transparência no tratamento de dados se apresenta como uma prática indispensável no contexto atual.
VICTÓRIA DIEZ
Advogada apaixonada pelo mercado imobiliário.
Nascida e criada em Londrina – PR, minha jornada acadêmica foi marcada pela busca constante pela excelência.
Concluí minha pós-graduação em Direito Empresarial na Escola Brasileira de Direito e aprofundei meu conhecimento em direito imobiliário ao obter meu título de especialista em direito e negócios imobiliários através do Master of Laws (LL.M) da Fundação Escola Superior do Ministério Público.
Durante meus cinco anos de atuação no dinâmico mercado imobiliário, dediquei-me intensamente à análise de riscos envolvendo transações e contratos imobiliários diversos. Para mim, a verdadeira maestria vem da combinação harmoniosa de diversas áreas de conhecimento, nos âmbitos prático e teórico.