A Constituição Federal de 1988, embora represente um grande avanço democrático para o país, indiscutivelmente, foi elaborada sob o viés socialista, que sempre predominou na história brasileira. Esse viés, como afirmei em artigo anterior, propiciou abissal atraso do Brasil em relação aos EUA, apesar de nossa independência (1822) ter ocorrido apenas 46 anos depois da deles (1776). Diversos artigos de nossa Lei Maior reafirmam o entendimento de que a propriedade, ainda que elencada entre nossos direitos fundamentais, padece de sérias limitações.
O direito de propriedade está previsto no art. 5º da CF, como garantia fundamental: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade*, nos termos seguintes: (…)”. Assim, o fruto do esforço em adquirir uma propriedade está assegurado. Ela não pode ser tomada por outrem, nem pelo Estado. Será? Infelizmente, não! A própria Constituição relativiza esse direito.
Embora o inciso XXII, do art. 5º, reafirme que “é garantido o direito à propriedade”, o inciso seguinte o flexibiliza: “XXIII – a propriedade atenderá a sua função social”. Da mesma forma, o art. 170: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I – soberania nacional; II – propriedade privada*; III – função social da propriedade*; (…)”. Mas, afinal, o que é função social da propriedade?
O jurista francês Léon Duguit cunhou o termo função social da propriedade, afirmando que “a propriedade deixa de ser um direito do indivíduo para verter-se em função social”. A discussão começou com a encíclica Rerum Novarum (1891), do Papa Leão XIII. Na área jurídica, acabou sendo admitido como princípio, especialmente influenciado por regimes totalitaristas de governo, nos quais os conceitos de bem-comum e solidariedade potencializam a expansão do poder estatal. Em regimes populistas de esquerda, a função social da propriedade encaixa como luva!
Com base nesse princípio, o ministro Luiz Roberto Barroso, do STF, decidiu conceder liminar na ADPF nº 828/DF para entender os efeitos da Lei nº 14.216/2021, que suspendia medidas concessivas de despejo até 31 de dezembro de 2021, por força da pandemia. A liminar foi renovada por outras duas vezes: até 30/06/2022 e até 31/10/2022. Vencida a última prorrogação, os autores da ADPF renovaram o pedido, que foi negado. Porém, bom ativista, o ministro Barroso não deixou de agir. Extra petita, aplicou o instituto da função social da propriedade.
O ministro decidiu que ordem de despejo ou reintegração de posse coletiva, urbana ou rural, passará por uma fase de transição antes da decisão judicial. Os Tribunais devem instalar comissões de conflitos fundiários para realização de inspeções judiciais e audiências de mediação, antes da decisão judicial. Mesmo onde o despejo/reintegração já tenha sido decidido. Também devem ser ouvidos o MP e a Defensoria Pública. O STF ratificou a decisão! A inação do Legislativo consolidou a relativização do direito fundamental à propriedade!