Por Flávia Pinheiros — Mediadora, Administradora de imóveis e Especialista em Gestão Contratual com IA para o mercado imobiliário.
No artigo anterior, exploramos o conceito de “Testamento Vital do Patrimônio” e como o envelhecimento populacional brasileiro está criando uma urgência no planejamento sucessório. O Brasil tem hoje 33 milhões de pessoas com 60 anos ou mais, número que mais que dobrou nas últimas duas décadas. Segundo o IBGE, podemos chegar a 75,3 milhões de idosos em 2070 – quase 38% da população total. Isso significa uma transferência patrimonial sem precedentes nas próximas décadas.
Agora, chegou o momento de analisar concretamente as duas principais estratégias para essa realidade inevitável: doação em vida versus herança tradicional. Uma decisão que pode representar a diferença entre uma transição patrimonial tranquila e décadas de conflitos familiares.
A pergunta que mais escuto em meus atendimentos é direta: “Flávia, é melhor doar agora ou deixar por herança?” Com 33 milhões de brasileiros já na terceira idade e uma transferência patrimonial sem precedentes acontecendo nas próximas décadas, essa não é mais uma questão para “um dia pensar” – é uma decisão urgente que pode determinar se sua família herdará soluções ou problemas.
O Dilema Real dos Números e do Tempo
O envelhecimento acelerado da população brasileira torna essa discussão ainda mais urgente. Com a expectativa de vida aumentando e a taxa de natalidade diminuindo, estamos diante de uma concentração patrimonial nas mãos de uma geração que precisará transferir seus bens nas próximas duas décadas. Segundo dados do IBGE (2024), 67% dos brasileiros com patrimônio imobiliário acima de R$ 500 mil não possuem planejamento sucessório adequado – e muitos deles já estão na faixa dos 60 anos ou mais. O resultado? Processos de inventário que consomem, em média, 18% do valor total dos bens entre custos, impostos e desvalorização durante o período de tramitação.
Em nossa administradora, acompanhamos 43 casos de sucessão imobiliária nos últimos três anos. Nos casos onde houve planejamento prévio, o tempo médio de transferência foi de 4,2 meses. Nos casos sem planejamento, a média foi de 2 anos e 7 meses – uma diferença que pode representar centenas de milhares de reais em custos diretos e indiretos.
A Estratégia da Doação: Controle e Economia
A doação em vida oferece algo que a herança nunca poderá proporcionar: controle total do processo. Você conduz pessoalmente a transferência patrimonial, mantendo domínio sobre timing, condições e até mesmo sobre as reações familiares. É como dirigir seu próprio processo sucessório, ao invés de deixá-lo nas mãos de terceiros após sua partida.
Do ponto de vista tributário, a doação permite um planejamento mais eficiente. O ITCMD, que varia de 4% a 8% conforme o estado, pode ser diluído ao longo do tempo através de doações graduais. Além disso, você elimina as custas de inventário, que normalmente representam 1% a 2% do patrimônio, e protege os bens contra futuras majorações tributárias.
A doação também permite que você observe como cada herdeiro administra o patrimônio recebido, possibilitando ajustes na distribuição dos bens restantes. Essa capacidade de “testar” a maturidade financeira dos filhos antes de transferir todo o patrimônio é invaluável para muitas famílias.
A modalidade mais inteligente costuma ser a doação com reserva de usufruto, especialmente para imóveis de renda. Esta estratégia permite que você doe o imóvel mantendo o direito de usar ou receber os rendimentos até o fim da vida, eliminando o futuro inventário mas preservando sua fonte de renda atual.
A Herança Tradicional: Flexibilidade e Proteção
Por outro lado, a herança oferece algo que a doação não consegue: flexibilidade até o final. Testamentos podem ser alterados quantas vezes necessário, e você mantém pleno controle patrimonial até o último momento de vida. Essa flexibilidade é especialmente valiosa quando há incertezas sobre o futuro dos herdeiros ou quando relacionamentos familiares são complexos.
A herança também protege contra arrependimentos. Diferente da doação, que é irrevogável e só pode ser desfeita com concordância do beneficiário, a herança permite mudanças de direção sem necessidade de anuência de terceiros. Em um mundo em constante transformação, essa capacidade de adaptação pode ser crucial.
Além disso, heranças tendem a gerar menos atritos familiares imediatos, já que as definições acontecem após o falecimento do doador. Isso pode ser uma vantagem quando há divergências entre herdeiros ou quando o patriarca prefere evitar conflitos durante sua vida.
O Fator Sistêmico: Além da Matemática
A perspectiva do Direito Sistêmico nos ensina que escolhas patrimoniais podem gerar sentimentos de exclusão, ansiedade sobre perda de controle e pressões familiares. Dar o melhor imóvel para um filho por questões de gênero, por exemplo, pode gerar conflitos duradouros, mesmo com a partilha formalmente concluída. A questão raramente é patrimonial – é sobre reconhecimento e valorização dentro do sistema familiar.
Por isso, a comunicação familiar é fundamental em qualquer estratégia escolhida. Surpresas patrimoniais geram mais conflitos que soluções. É essencial incluir a família no processo de decisão, respeitando o tempo e as resistências de cada um, mas mantendo a transparência sobre intenções e critérios.
Construindo a Estratégia Ideal
Na prática, a melhor abordagem frequentemente combina ambas as estratégias. Desenvolvemos uma matriz de decisão baseada em fatores como qualidade dos relacionamentos familiares, idade e saúde do proprietário, maturidade financeira dos herdeiros e diversificação patrimonial.
Opte pela doação quando possui relacionamento familiar sólido, patrimônio diversificado, idade acima de 65 anos com saúde estável, e quando deseja acompanhar os resultados de suas decisões. A herança, por sua vez, é mais adequada quando relacionamentos familiares são complexos, quando ainda há dependentes menores, ou quando você precisa manter flexibilidade patrimonial para imprevistos futuros.
A estratégia progressiva se torna ainda mais relevante considerando o cenário demográfico atual. Com a população brasileira envelhecendo rapidamente, não temos o luxo de postergar indefinidamente essas decisões. Uma abordagem comum e eficaz é começar aos 65-70 anos com doação de um imóvel menor para “testar” a maturidade dos herdeiros, seguir com doação com usufruto dos imóveis de renda, e manter via herança os imóveis residenciais ou mais complexos. Essa abordagem permite corrigir o curso durante o processo e adaptar as decisões conforme a evolução familiar – algo especialmente importante considerando que muitos proprietários ainda terão 15 a 20 anos de vida ativa pela frente.
Evitando os Erros Mais Comuns
Muitos cometem o erro de tomar decisões puramente tributárias, ignorando impactos familiares e pessoais. O aspecto fiscal deve ser considerado como um dos fatores, não o único. Outro erro frequente é doar a nua-propriedade de imóveis de renda sem reservar usufruto, abrindo mão desnecessariamente de rendimentos.
A falta de comunicação familiar também é um problema recorrente. Decisões tomadas unilateralmente, mesmo que bem-intencionadas, frequentemente geram mais conflitos que soluções. Por fim, doar todo o patrimônio pode criar dependência futura – é fundamental manter sempre uma reserva patrimonial para necessidades imprevistas.
A Tecnologia Como Aliada
A inteligência artificial está revolucionando também o planejamento sucessório. Hoje utilizamos ferramentas que simulam cenários tributários com precisão, analisam históricos familiares para identificar padrões, modelam impactos financeiros de diferentes estratégias e geram documentos personalizados para cada situação. Em nossa prática, essas ferramentas reduziram em 60% o tempo de análise inicial e aumentaram em 40% a precisão das recomendações.
A Decisão é Sua, Mas o Tempo Não Espera
Com o envelhecimento populacional brasileiro acontecendo em ritmo acelerado, não existe fórmula mágica para escolher entre doação e herança, mas existe urgência para tomar essa decisão. A geração que concentra a maior parte do patrimônio imobiliário do país está envelhecendo, e procrastinar pode significar deixar escolhas cruciais para momentos de menor lucidez ou capacidade de articulação familiar. Existe sim uma metodologia para analisar sua situação específica e tomar a decisão mais adequada para sua família e seus objetivos. O que posso afirmar, com base em centenas de casos acompanhados, é que famílias que planejam antecipadamente, independente da estratégia escolhida, têm resultados significativamente melhores que aquelas que deixam tudo para o “destino” decidir.
A pergunta não é se você deve planejar a sucessão de seus imóveis. A pergunta é: como você quer que sua família se lembre desse processo – como um momento de união e clareza, ou como o início de anos de conflitos? Sua família merece herdar soluções, não problemas. E isso só acontece quando planejamos com antecedência, clareza e, principalmente, com amor.
No próximo artigo, abordaremos “Holding Familiar Imobiliária: Quando e Como Estruturar” – explorando como grandes patrimônios podem ser organizados de forma corporativa para otimizar gestão, tributação e sucessão.
Quem vê resultados, nem sempre conhece a história.
Sou Flávia Pinheiros Costa, formada em Direito há 23 anos. Pós-graduada em Direito Imobiliário, Sistêmico, Contratual, Canônico e de Família. Atualmente, curso Inteligência Artificial para Advogados e sou mestranda em Mediação de Conflitos.
Mas o que realmente me move são pessoas.
Escutar histórias.
Ajudar a construir acordos.
Trazer clareza onde antes havia conflito.
E fazer do Direito uma ponte — não um muro.
Minha trajetória é marcada pela escuta ativa, pela conexão humana e pela busca constante por soluções que respeitem a lei e as relações.
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E, acima de tudo, sou alguém que acredita que ética, escuta e evolução diária são inegociáveis.
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