Matéria originalmente publicada na Revista VOCÊ S/A, edição 265, em 19 de junho de 2020.
Há alguns anos, alugar ou comprar um imóvel poderia ser um verdadeiro teste de paciência. Horas pesquisando em anúncios com poucas informações e imagens de baixa qualidade (que quase nunca correspondiam à realidade) e idas e vindas a cartórios eram rotina, sem contar a busca por um fiador — drama à parte para os locatários.
Mas o avanço da tecnologia não tardou a chegar ao mercado imobiliário. Atualmente, potenciais compradores ou locatários conseguem avaliar dezenas de imóveis em alguns minutos, fazem tours virtuais e compram ou alugam casas ou apartamentos totalmente de forma digital. “O mercado imobiliário tinha de se adaptar a essa nova realidade. Não era uma questão de escolha, mas de sobrevivência”, afirma Claudio Hermolin, vice-presidente de intermediação imobiliária e marketing do Sindicato da Habitação de São Paulo (Secovi-SP).
Embora a experiência de comprar ou alugar imóveis tenha melhorado nos últimos anos, ainda há muito o que avançar. Um exemplo disso é que, segundo estimativas do setor, uma pessoa leva, em média, mais de um ano para fechar um negócio de compra ou venda de uma propriedade.
Diante de um mercado que movimenta cerca de 200 bilhões por ano e conta com tantas dores à espera de solução, para usar o jargão dos empreendedores, não é à toa que o setor imobiliário viu explodir o surgimento de startups especializadas no ramo. De acordo com dados da Terracotta Ventures, fundo de investimentos focado em startups de construção, venda e aluguel de imóveis, o número de novas empresas no segmento quase triplicou, passando de 250 para 700 de 2017 a 2020.
O crescimento é tanto que elas ganharam até nome: proptechs. O termo é usado para definir startups que oferecem soluções ou modelos de negócios inovadores para locatários, compradores e vendedores de propriedades. “O surgimento dessas companhias faz parte de um cenário maior, de transformação digital no setor, mas a crise financeira, que impactou duramente o mercado imobiliário entre 2014 e 2017, também contribuiu, já que obrigou empresas a inovar”, afirma Bruno Loreto, sócio diretor da Terracotta Ventures.
De olho no potencial desse mercado, os engenheiros cariocas Gustavo Vaz, de 31 anos, e Lucas Cardozo, de 37 anos, fundaram o marketplace de venda de imóveis EmCasa, em 2017. Filho de uma corretora de imóveis e com passagens por empresas do setor imobiliário, Gustavo percebeu que havia espaço para melhorar a experiência dos clientes. “Para muitas pessoas, comprar a casa própria é a transação mais importante da vida, porém, também era um dos processos mais burocráticos e complicados”, diz.
A startup tem tours virtuais em 3D e usa um algoritmo para avaliar o valor das propriedades. Com isso, a aquisição de um imóvel costuma ocorrer em cerca de 24 dias. “Também desempenhamos um papel ativo nas negociações para que ambas as partes [proprietário e comprador] tenham uma jornada mais eficiente”, diz Gustavo.
Com apenas dois anos de atuação, a EmCasa, que começou na cidade do Rio de Janeiro, já expandiu para São Paulo e aumentou de 15 para 90 o número de funcionários. Ao todo, mais de 300 imóveis foram vendidos por meio da plataforma.
Entre os próximos passos da startup está a ampliação dos serviços para outras capitais, além do lançamento de uma área de consórcios. Segundo Gustavo, a criação de soluções financeiras atreladas ao setor, inclusive, é um nicho promissor. “Esse tipo de serviço é pouco maduro no Brasil, se comparado a outros mercados, como Europa e Estados Unidos”, diz.
Com o avanço das startups, as imobiliárias e construtoras tradicionais são obrigadas a mudar. A mineira MRV, uma das maiores incorporadoras e construtoras da América Latina no segmento de empreendimentos residenciais e econômicos, é um exemplo. Somente nos últimos cinco anos, a empresa investiu mais de 250 milhões de reais em projetos de transformação digital.
Um deles é uma plataforma de vendas online, lançada no começo de 2020, que permite adquirir um imóvel pela internet. Todo o processo é digital: desde a simulação e a análise de crédito até visitas e a assinatura de contratos. Com a crise do coronavírus, a ferramenta, que estava disponível apenas para Belo Horizonte, foi ampliada e passou a operar em 160 cidades de 22 estados brasileiros. Por enquanto, o site não está disponível apenas em Rondônia, Pará, Roraima, Acre e Amapá.
E para competir no ramo de locação, que nos últimos anos viu fatias enormes ser abocanhadas pela startup unicórnio Quinto Andar, a MRV decidiu criar a própria proptech de aluguel de imóveis. A Luggo, lançada em 2018, loca imóveis de forma totalmente online, sem a exigência de fiador — assim como o Quinto Andar. O diferencial é que as habitações disponíveis são construídas e administradas pela própria MRV.
Atualmente, a Luggo está presente em Belo Horizonte e Curitiba e conta com três prédios residenciais, que somam 332 apartamentos. No primeiro trimestre do ano, a taxa de ocupação dos imóveis lançados foi de 95%. Até 2021, a empresa pretende expandir seus serviços para São Paulo, grande Salvador, Campinas e Porto Alegre
“Com esses investimentos, nosso objetivo é nos consolidar como uma construtech [startup que oferece soluções tecnológicas para a cadeia produtiva da construção civil]”, afirma Rodrigo Resende, diretor de marketing da MRV. De acordo com ele, hoje a construtora aluga uma propriedade em apenas duas horas — há cinco anos, demorava, em média, uma semana. Além disso, atualmente 66% das vendas mensais da MRV são realizadas totalmente pela internet.
O esforço da companhia para acompanhar os novos tempos já rendeu bons frutos. Em 2019, por exemplo, a empresa registrou o melhor primeiro trimestre de sua história, com lucro líquido de 189 milhões, um aumento de 18% se comparado ao mesmo período do ano anterior.
O movimento de modernização no mercado imobiliário não abre oportunidades apenas para empreendedores. A área de transformação digital da MRV, por exemplo, conta com 100 funcionários. “A maior parte é da área de tecnologia, mas também existem pessoas que atuam no comercial, marketing, jurídico, relacionamento com cliente e inteligência de mercado”, afirma Rodrigo.
Além de profissionais tradicionais da área de TI, como desenvolvedores de realidade virtual e de chatbots e especialistas em user experience (UX), a digitalização do ramo cria novas carreiras. Uma delas é a de gestor de propriedades urbanas, uma espécie de síndico profissional, que pode chegar a ganhar 6.000 reais por mês. Ele é responsável por melhorar a experiência de moradia dos clientes, auxiliando na utilização de serviços disponíveis nos prédios — hoje em dia, alguns condomínios mais modernos contam até com coworking, por exemplo —, além de intermediar eventuais problemas e reparos.
Porém, ao passo que surgem novas profissões e tecnologias no mercado imobiliário, muito se fala sobre a possibilidade de a carreira de corretor de imóveis desaparecer. Um levantamento da consultoria EY de 2016 chegou a cravar que a função sumiria até 2025. Entretanto, especialistas vão contra essa crença e são unânimes em afirmar que a profissão não está com os dias contados.
“As pessoas valorizam a ajuda de alguém que tenha mais experiência para tomar a decisão. O início da jornada de um locatário ou comprador pode até ser self-service, mas, na hora de bater o martelo, ter uma orientação profissional faz toda a diferença”, afirma Claudio, do Secovi-SP.
Uma prova disso é que a EmCasa internalizou o time de vendas — ao contrário da maioria das startups do ramo, que utiliza corretores autônomos. Além disso, a empresa optou por recrutar funcionários de fora do mercado imobiliário. Hoje, por exemplo, o departamento comercial conta com 30 pessoas que vieram de setores como varejo e tecnologia ou de outras startups. “Estávamos em busca de profissionais que prestassem um excelente atendimento para nossos clientes, mais do que se fossem especialistas na área de imóveis”, afirma Gustavo.
A escolha da startup tem razão de ser. Por muitos anos, a profissão de corretor era vista como uma carreira que não exigia muita qualificação. Era comum, inclusive, aprender o ofício na prática, sem treinamentos formais. Porém, com o aumento da competitividade no setor, até mesmo corretores com anos de experiência no ramo estão se reinventando.
Esse é o caso do paulistano Walter Tito Bruno, de 50 anos, que trabalha como corretor há quase três décadas. Ciente de que teria de se adaptar, realizou cursos e aprendeu a usar ferramentas de marketing digital e redes sociais. Também mudou a abordagem de seu atendimento. “Hoje meu trabalho é prestar consultoria aos clientes e, de fato, entender quais são suas necessidades”, diz.
Além de usar sites como Loft, Quinto Andar e Viva Real, Walter recorre às plataformas Órulo e Tegra Parcerias, que disponibilizam tabelas de preços e promoções sobre lançamentos imobiliários. “As informações sobre os empreendimentos ficaram mais objetivas e fáceis de ser acessadas e, com isso, ficou mais rápido fechar os negócios”, afirma Walter.
E, embora a pandemia do coronavírus tenha minado as expectativas dos especialistas, que esperavam uma retomada do setor imobiliário, é certo que a tecnologia veio para ficar. A tendência é que a adoção de ferramentas digitais seja intensificada, uma vez que imobiliárias de todos os tamanhos têm recorrido ao online para continuar com os negócios durante o isolamento. Considerando que, mesmo após o surto, o novo normal será marcado por videochamadas, máscaras e distanciamento, o aperto de mãos para fechar a compra da casa nova também ficará para depois.