A incorporação imobiliária é uma atividade em que um incorporador se propõe a promover ou construir um edifício constituído por unidades autônomas, para então promover a alienação destas unidades. Trata-se de um negócio jurídico que tem o intuito de promover e realizar a construção, para alienação total ou parcial, das unidades autônomas da edificação.
O seu tratamento legislativo, a nível nacional, foi enaltecido através da Lei n. 4.591/64, ao passo que, anteriormente, não existia um ordenamento específico que tratasse da incorporação imobiliária em imóveis. Com o crescimento dessa atividade, a desenfreada urbanização do país, impulsionando a propriedade horizontal, ocasionou a criação da Lei n. 4.591/64, que regula o instituto.
Muito além do que dispor quanto aos aspectos burocráticos e técnicos da incorporação, a Lei n. 4.591/64 trouxe em seu conteúdo normativo um sistema protetivo aos adquirentes das unidades autônomas, tendo em vista que o adquirente se posiciona como parte vulnerável frente ao incorporador.
Com o advento da Lei n. 8.078/90, conhecida como Código de Defesa do Consumidor, surge no ordenamento jurídico brasileiro a noção de vulnerabilidade do consumidor. O diploma consumerista surge para atuar em todas as áreas do direito, desde que verificada a existência de uma relação de consumo. A sua abrangência acabou por estender sua aplicabilidade à diversas situações, dentre elas a incorporação imobiliária.
Diante do conflito protecionista das leis, surge a discussão acerca da incidência do que dispõe o Código de Defesa do Consumidor, no âmbito das incorporações imobiliárias, questionando-se quanto à possibilidade do referido instituto regular as relações oriundas das incorporações imobiliárias, mesmo com a existência da Lei n. 4.591/64.
Na Lei n. 4.591/64, verifica-se a previsão, para a construção do edifício, em três modalidades, quais sejam, a construção por conta e risco do incorporador, prevista no artigo 41 e 43, a construção por empreitada, prevista no artigo 55 e, ainda, a construção por administração, prevista no artigo 58.
Aqui, abordaremos exclusivamente a construção por administração, ou como popularmente conhecida, construção a preço de custo, a qual será mais bem analisada no tópico seguinte.
DA CONSTRUÇÃO POR ADMINISTRAÇÃO OU A PREÇO DE CUSTO
A construção de edifício por administração própria ou a preço de custo é regida pelos artigos 58 e seguintes da Lei 4.591/64, em que a obra pertence aos próprios condôminos, que contratam uma empreiteira para administrá-la, e os componentes se comprometem a cumprir sua parte no empreendimento, pagando as prestações até a sua conclusão.
Neste sistema construtivo os condôminos empreendem a construção de um edifício residencial, onde cada um deles detêm uma fração ideal do terreno e que irá, futuramente, tornar-se uma unidade residencial autônoma.
Para que isso ocorra, todos os condôminos devem contribuir para o bem comum, que é a construção do edifício com as parcelas mensais. É como se fossem sócios no empreendimento e cada um contribuísse com a sua parte.
A contribuição de cada um dos condôminos é feita para a Associação que está construindo o Edifício. O andamento da obra depende diretamente da contribuição dos condôminos associados, ou seja, havendo fluxo de caixa, a construção “caminha” mais rápido, caso contrário, mais lento.
Para esta participação os adquirentes constituirão uma Associação ou Condomínio, mediante Assembleia Geral de Constituição. A Ata de Constituição será registrada no Cartório de Registro de Títulos e Documentos, faz-se a inscrição no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas do Ministério da Fazenda, e com CNPJ, abre-se uma conta bancária em nome da Associação, para o cumprimento do disposto ao artigo 58 da Lei 4.591/64.
Todo o recurso que entra na obra, sem exceção, é proveniente da arrecadação dos condôminos, ao passo que a construtora, recebe uma taxa de administração para gerir o aporte disponibilizado e construir o empreendimento. Para formalizar e reger as relações entre as partes atuantes no negócio jurídico, são celebrados Instrumentos Particulares de Construção de Obra por Administração entre os condôminos e a construtora administradora da obra.
Antes da constituição do grupo de condôminos, é realizado um estudo de viabilidade e estimativa de custas da obra, por meio de um cálculo previamente pela construtora, baseado no custo do terreno onde o empreendimento será construído e de previsões realizadas através de orçamentos, cotações de preço dos materiais a serem utilizados e pelas propostas de fornecedores.
Com o estudo, consegue-se obter valores estimativos para os condôminos que se interessarem em participar do grupo que será formado para empreender a obra. De tal forma que, tudo se concretizará somente com a formação do grupo de condôminos, a assinatura dos contratos e com o regular adimplemento das parcelas pactuadas.
Por fim, uma Associação é constituída pelos Condôminos, para empreender a construção de um Edifício Residencial ou empresarial, pelo sistema a preço de custo, pautado no Artigo 58 da Lei 4.591/64 e não uma construção a preço fechado. Certo é que um grupo de pessoas, com o intuito de empreender um Edifício, reuniram-se a este propósito comum, onde todos contribuem para a construção de sua unidade e da área comum. É de bom alvitre mencionar que o ímpeto comum é que possibilitou a instauração do grupo para a construção do edifício, caso contrário a construção seria inviável.
Na construção de edifício por administração própria ou a preço de custo, a obra pertence aos próprios condôminos, que contratam uma empreiteira para administrá-la, e os componentes se comprometem a cumprir sua parte no empreendimento, pagando as prestações até a sua conclusão. Os custos totais da obra devem ser arcados pelos condôminos.
A construtora figura como mera administradora da obra, mediante contrato celebrado com a Associação constituída. De acordo com que dispõe os artigos 58 e seguintes da Lei 4.591/64, o condomínio é o responsável pela arrecadação do numerário necessário para desenvolver a obra e pela sua fiscalização.
Importa destacar que, não existe a previsão legal na Lei de Incorporações Imobiliárias de um dos condôminos deixar o grupo, o que se explica pela necessidade do término da obra, uma vez dado início a construção do Edifício tem de ser finalizado. Todos contribuem para o bem comum. A única possibilidade é o titular da fração ideal aliená-la para terceiro. Com isso, não há a “quebra” de unicidade do grupo de empreendedores.
Ora, caso houvesse a possibilidade de desistência da incorporação imobiliária tornaria inviável sua conclusão, vez que a cada condômino que deixasse o grupo o custo para a construção ficaria maior, levando a sua inviabilidade. Trata-se da união de pessoas para o bem comum, sem a qual seria impossível sua realização. A desistência de um dos condôminos em permanecer no grupo prejudicaria os demais, por isso não existe referida possibilidade descrita na Lei de Incorporações Imobiliárias.
O Condomínio ou a Associação não pode ser prejudicado pela inadimplência, já que elevaria a responsabilidade dos demais condôminos que estão em dia com suas obrigações, ou seja, a inadimplência de um dos condôminos onera aqueles que são adimplentes.
Seguindo o entendimento há anos pacificado no Superior Tribunal de Justiça[1], no regime de construção por administração, a responsabilidade pelo andamento, recebimento das prestações e administração da obra é dos condôminos, por intermédio da Comissão de Representantes eleita.
Assim como, a figura da devolução dos valores integralmente pagos é medida estranha a legislação da incorporação imobiliária, vez que após o ingresso do condômino ao grupo de empreendedores e o início da construção do empreendimento, somente seria possível a sua retirada com a venda de sua unidade. Essa regra tem uma explicação lógica: os demais condomínios após darem vida ao Condomínio e a Associação devem contribuir para a finalização da obra.
Tal impossibilidade decorre justamente ao fato de que a contribuição corresponde a construção do edifício como um todo, não somente quanto a unidade reservada por cada condômino. Por isso que, as unidades que não são revendidas, são incorporadas à Associação e, caso venham a ser alienadas posteriormente, os valores são repassados à Associação, contribuindo para a construção do empreendimento.
Se cada condômino que ingressou no grupo, ao primeiro sinal de dificuldade ou pelo seu julgo, desistir de sua unidade todos os demais serão prejudicados, podendo, até mesmo, inviabilizar toda obra já construída.
De mais a mais, as políticas públicas do desenvolvimento urbano impedem que e inicie uma obra e a abandone, sob pena de criar nas cidades um verdadeiro “mar” de edifícios inacabados propício a invasões e habitações irregulares. Não é esta a intenção da Lei 4.591/64. A desistência e inadimplência prejudicam a natureza jurídica da construção à preço de custo inviabilizando toda a sua essência.
Por isso, a Lei 4.591/64 prevê a exclusão do grupo de condôminos do integrante devedor, já que sua inadimplência onerava aos demais, não podendo, ao final da construção, receber sua unidade sem a devida contraprestação. Assim, como disciplinado no Artigo 63 da Lei 4.591/64 a unidade do condômino devedor poderá ser levada a leilão para pagamento da dívida para com a Associação.
DA INAPLICABILIDADE DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR NAS CONSTRUÇÕES POR ADMINISTRAÇÃO
Via de regra, verifica-se a incidência do Código de Defesa do Consumidor (Lei Federal 8.078/90) aos contratos que versem acerca da venda de unidades imobiliárias, firmados por adquirentes junto às incorporadoras. Contudo, esta regra, assim como tantas outras, comporta exceções.
A regulação da incidência da legislação consumerista encontra suporte em seus artigos 2º e 3º, do Código de Defesa do Consumidor. Segundo o que se extrai da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça[2], admite-se a aplicação do CDC, em situações específicas, nas relações entre fornecedores e consumidores-empresários em que fique evidenciada a relação de consumo.
A sua abrangência acabou por estender a sua aplicabilidade à diversas situações, dentre elas, às incorporações imobiliárias, as quais consistem em empreendimentos construídos com base em contratos de promessa de compra e venda das unidades que serão construídas (SANTOS, 2018, p. 11).
Contudo, não se aplica, nesta modalidade de incorporação imobiliária, o Código de Defesa do Consumidor, tendo em vista que os condôminos contribuem para a construção de seu empreendimento.
A natureza da construção a preço de custo real, disciplinada no artigo 58 da Lei n. 4.594/64 é completamente distinta da construção à preço fechado, já que nesta modalidade de construção o condômino adquire da própria construtora e na construção à preço de custo, os próprios condôminos empreendem o edifício, contratando uma construtora para administrar a obra, tendo em vista a questão técnica da construção.
Não existe relação de consumo de um membro da Associação contra a própria.
Importa destacar que, a construtora, contratada pela Associação para fins de administrar a obra, não realiza qualquer negociação jurídica diretamente com os condôminos, mas sim para com a entidade constituída por eles, ao passo que não vende nenhuma das unidades, apenas administra a obra.
Desta sorte, não são aplicáveis as disposições do Código de Defesa do Consumidor, porque também não se pode considerar o condomínio como fornecedor e nem o condômino como consumidor final.
Como mencionado, nesta espécie construtiva os condôminos se reúnem e constroem um edifício, aferindo vantagens em preços e condições de mercado, sendo que o preço final é muito menor do que uma compra e venda comum.
Assim, entendidas as diferenças entre os sistemas construtivos, conclui-se que no sistema de construção por administração, não há que se em incidência da legislação consumerista, ao passo que a boa-fé objetiva e o equilíbrio contratual estão tutelados pela legislação específica inerente ao instituto.
OAB/PR 80.036
Advogada especialista em Direito Imobiliário e Registro de Imóveis. Juíza Leiga e Mestre em Direito (UEL).
Assessoria jurídica em negócios imobiliários, regularização de imóveis, incorporações imobiliárias, inventários e contratos.
REFERÊNCIAS
SANTOS, Rafael Silva Verdival. Incorporações imobiliárias: os limites de incidência do Código de Defesa do Consumidor. Dez. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/70951/incorporacoes-imobiliarias-os-limites-de-incidencia-do-codigo-de-defesa-do-consumidor.
[1] REsp. n. 679.627/ES. Relatora Min.ª Nancy Andrighi. Terceira Turma. Julgado em 26.10.2006, DJU, 20.11.2006.
[2] REsp 1.599.042/SP, rel. min. Luis Felipe Salomão, j. 14/3/2017.