Os desafios enfrentados pelo uso da procuração em causa própria em transações imobiliárias

O mandato é uma espécie de contrato, portanto, uma manifestação de acordo de vontade onde uma determinada pessoa se compromete a realizar certas ações em nome de outra. As partes envolvidas nesse tipo de negócio jurídico são conhecidas como mandante (aquele que dá poderes) e mandatário (a pessoa que recebe esses poderes para agir em nome do mandante).

Em termos simples, o mandatário tem a permissão de agir em nome do mandante, podendo fazer acordos e assumir responsabilidades em seu nome e outras possibilidades, a depender dos poderes outorgados e descritos no instrumento de mandato – chamado de procuração. Este tipo de documento estabelece obrigações principalmente para o mandatário e é construído com base na confiança mútua entre as partes.

A procuração é um ato solene e formal. Segundo o Código Civil brasileiro, toda pessoa é capaz e apta para conceder procurações, com exceção dos incapazes e relativamente incapazes, podendo estes últimos firmar procuração pública somente se assistidos por seus tutores legais.

As demais regras e o funcionamento das procurações são especificamente determinados pelos artigos 653 e 663 do Código Civil. Entre as possíveis formas de se operar essa delegação de poderes, tem-se a procuração pública e a procuração particular.

Quando esse tipo de instrumento é utilizado nas negociações imobiliárias, ela deve ser – obrigatoriamente – pública, nos casos em que o imóvel negociado possua valor superior a 30 salários mínimos (o que é muito fácil de acontecer). Então, na maioria esmagadora de venda de bens imóveis, todos os documentos serão públicos.

Em se tratando de procuração em causa própria, os poderes outorgados conferem ao mandatário a possibilidade de transferir o bem para si ou aliená-lo para terceiros sem a necessidade de prestação de contas. Ainda, a principal diferença em relação a outros tipos de mandato, é que a procuração em causa própria é irrevogável, isto é, permanecerá com plena eficácia ainda que o mandante venha a falecer.

Na maioria dos estados do país existem disposições específicas quanto ao que deve constar nesse instrumento.

No Rio Grande do Sul, a Consolidação Normativa Notarial e Registral dispõe que as procurações em causa própria relativas a imóveis deverão conter os requisitos da compra e venda (a coisa, o preço e o consentimento), e por suas normas serão regidas. Já no Distrito Federal, o Provimento-Geral da Corregedoria-Geral de Justiça do TJ/DF exige que a procuração em causa própria contenha elementos próprios de um contrato de compra e venda, como o valor do imóvel, a descrição do bem e a emissão da Declaração de Operação Imobiliária – DOI. No Paraná, o Código de Normas Extrajudicial, estabelece que a procuração em causa própria relativa a imóvel, deverá conter os requisitos da compra e venda (coisa, preço e consentimento) e por suas normas serão regidas.

Diante dos requisitos estaduais apontados é possível perceber que existente uma tentativa de evitar que as partes se esquivem do registro e pagamento de tributos relativos à venda ajustada entre os contratantes originais. Em outras palavras, através dos parâmetros estabelecidos, se pretende evitar que as partes decidam “pular” um dos negócios concretizados, sendo necessário o registro e recolhimento de impostos de toda a cadeia de alienações do bem.

O Superior Tribunal de Justiça também já analisou outro caso, que tratava sobre a possibilidade de incidência do imposto referente à transmissão de bens móveis entre pessoas vivas – o ITBI. Essa discussão foi travada justamente considerando essa possibilidade de transmissão ao próprio mandatário ou à terceiros através do uso de procuração. Contudo, a partir da delimitação do conceito do instrumento de mandato, o STJ entendeu que a procuração não transmite a propriedade e, por essa razão, a incidência do imposto deveria ser postergada.

Tal possibilidade de ilícito foi suscitada em julgado de recurso perante o Superior Tribunal de Justiça. Segundo o Ministro Herman Benjamin, o mandato em causa própria é usado também como forma de “contornar” o pagamento de ITBI, imposto cujo fato gerador é, à luz do STJ, a transferência da propriedade imobiliária, que somente se opera mediante registro do negócio jurídico no ofício competente (STJ, AgRg no AREsp nº 215.273/SP, 2ª Turma, Rel. Ministro Herman Benjamin, DJe 15/10/2012).

Sendo assim, há controvérsias se essa operação de outorga de mandato em causa própria configura ou não fraude fiscal e também se a procuração em causa própria poderia ser registrada no Cartório de Imóveis.

Entendo que a procuração em causa própria não pode ser objeto de registro na matrícula do imóvel em razão da taxatividade dos atos de registro (art. 167, I, da Lei de Registros Públicos), mas poderia ser objeto de averbação por força da natureza exemplificativa dos atos de averbação (art. 246, da mesma lei). De todo modo, ainda que possível a averbação, o ato registral não terá o condão de transferir o direito real de propriedade ao mandatário, apenas dará (nova) publicidade a outorga de poderes.

A procuração em causa própria, por si só, não possui a capacidade de transferir diretamente a propriedade de um determinado bem a que se refere. Esse processo dependerá da formalização de um novo acordo jurídico. Até que isso ocorra, a pessoa que concedeu a procuração permanece como titular dos direitos relacionados.

Em outro caso, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça estabeleceu um entendimento sobre a questão ainda bastante controversa no meio jurídico. Essa decisão auxilia na uniformização da jurisprudência, uma vez que segue a mesma linha anteriormente adotada pela 4ª Turma da corte, que também trata de assuntos de Direito Privado.

No caso analisado pela 3ª Turma, um indivíduo assinou um contrato de compra e venda de um imóvel em construção com uma empresa de incorporação imobiliária e, posteriormente, concedeu uma procuração em causa própria referente a esse bem para uma terceira pessoa. Diante do atraso na entrega do imóvel, o comprador original moveu uma ação contratual combinada com a restituição de valores.

O Tribunal de Justiça do Distrito Federal o considerou parte ilegítima para realizar tal pedido, alegando que a procuração concedida equivaleria à transferência de propriedade do imóvel. A relatora, ministra Nancy Andrighi, explicou que, apesar da concessão da procuração em causa própria, o comprador original  permanecia como titular dos direitos e das pretensões jurídicas em relação ao contrato que assinara, podendo, portanto, solicitar a rescisão da promessa de compra e venda.

O ministro Ricardo Villas Bôas Cueva concordou ao salientar que a procuração em causa própria não implica na cessão de direitos, compra e venda de móvel ou imóvel ou mesmo doação. “A posição de titular do contrato permanece mesmo após a concessão do (amplo, porém específico) poder de transferir o bem.” Os ministros Paulo de Tarso Sanseverino e Marco Aurélio Bellizze também votaram para formar a maioria.

Em conclusão, o embate jurídico acerca da procuração em causa própria revela nuances importantes para profissionais do direito, partes envolvidas em transações imobiliárias e corretores de imóveis. A discussão sobre sua possível configuração de fraude fiscal e os limites de sua aplicação ressalta a necessidade de cuidado a partir da análise de documentos e formato do negócio que será intermediado ou assessorado.

CONHEÇA MAIS SOBRE A AUTORA DESTE POST:

VICTÓRIA DIEZ

Advogada apaixonada pelo mercado imobiliário.

Nascida e criada em Londrina – PR, minha jornada acadêmica foi marcada pela busca constante pela excelência.

Concluí minha pós-graduação em Direito Empresarial na Escola Brasileira de Direito e aprofundei meu conhecimento em direito imobiliário ao obter meu título de especialista em direito e negócios imobiliários através do Master of Laws (LL.M) da Fundação Escola Superior do Ministério Público.

Durante meus cinco anos de atuação no dinâmico mercado imobiliário, dediquei-me intensamente à análise de riscos envolvendo transações e contratos imobiliários diversos. Para mim, a verdadeira maestria vem da combinação harmoniosa de diversas áreas de conhecimento, nos âmbitos prático e teórico.

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